A fazer fé no ministro dos Transportes - quando se trata de Ricardo D’ Abreu é sempre prudente ter um pé atrás, dado o seu gordo histórico de decisões nada alinhadas com a boa gestão da rés-pública - o escandaloso contrato da compra de 600 autocarros foi, agora, remetido ao Tribunal de Contas para fiscalização preventiva.
Depois de queimar as mãos de ambos, o Presidente da República e o ministro dos Transportes, os dois responsáveis por aquilo que, garantidamente, já entrou nos anais da história angolana como o maior golpe financeiro, decidiram, “ouvida” a consternação da opinião pública com os contornos da operação, partilhar a batata quente com o Tribunal de Contas.
O pelouro, agora dirigido pelo jurista Sebastião Gunza (na foto) está perante um daqueles dilemas perante o qual poucos gostariam de estar.
Se, como se espera de um Tribunal de Contas, chumbar, sem mas nem ontem, o escandaloso contrato, comprovará perante a opinião pública que a dupla Presidente da República/Ministro dos Transportes pretendeu assaltar o cofre público à luz do dia e em proporções provavelmente sem paralelo no mundo.
Mas, se, pelo contrário, aprovar o contrato nos termos em que foi publicado no Diário da República, Domingos Gunza, indivíduo de boa índole, e os demais juízes do Tribunal de Contas, transformar-se-ão em cúmplices de um roubo sem antecedentes em Angola e merecedor de constar do Guiness Book, o mais famoso livro de recordes.
Os juízes conselheiros do Tribunal de Contas estão perante uma de duas únicas opções: ou escolhem a honra e a dignidade, e com isso ganham, por antecipação, merecido lugar na galeria dos melhores filhos de Angola, ou abraçam a vilania, a desonra, a indignidade.
Ao cidadão comum, o contrato para a compra de 600 autocarros, ao preço unitário de mais de 500 mil euros, não oferece a menor dúvida de escandalosa sobrefacturação.
Porém, ao Tribunal de Contas que, em Angola, alia à sua função de fiscalização da legalidade das finanças públicas a uma forte obediência ao poder político, nomeadamente ao Presidente da República, a sobrefacturação pode não ser tão evidente.
Há quase um ano (23 de Junho) quando empossou Domingos Gunza, o Chefe de Estado sugeriu que o Tribunal de Contas não deveria exercer com o requerido zelo as suas competências constitucionais.
Segundo ele, algumas empreitadas para infraestruturas públicas não devem ter demasiados vistos prévios do Tribunal de Contas. E noutras, o visto seria mesmo “dispensável”.
“Não gostaríamos de ver o Tribunal de Contas a aparecer à opinião pública como um factor de estrangulamento neste nosso ritmo de execução de projetos” disse o Chefe de Estado, nomeando entre as empreitadas que “dispensam” o visto prévio do Tribunal de Contas as infraestruturas ligadas à saúde, energia, educação e águas.
Através do Despacho n.º 111/24, de 17 de Maio, o Presidente da República autoriza o Ministério dos Transportes a celebrar contrato com o consórcio constituído pela Opaia Europa, Limitada, e IDC International Traiding DMCC para a aquisição de 600 autocarros para “reforçar a rede de transportes urbanos regular de passageiros em todas as 18 províncias do país”, objectivo previsto no Programa dos Transportes Públicos “para o cumprimento das prioridades estabelecidas no Plano de Desenvolvimento Nacional” e no “Plano Director Nacional do Sector dos Transportes e Infraestruturas Rodoviárias”.
A despesa autorizada é de “módicos” 323.500.000,00, o que contas feitas, equivale a aproximados 541 mil euros por cada autocarro.
Não há no despacho do Presidente da República nenhuma alusão a quaisquer das infraestruturas - saúde, energia, educação e águas – que dispensariam o visto prévio do Tribunal de Contas.
Com a opinião pública atenta, o Tribunal de Contas não tem como engavetar a batata que, segundo o ministro dos Transportes, agora lhe caiu, embaraçosamente, no colo.
“Apertado” por deputados, o ministro dos Transportes, cuja idoneidade ele próprio põe em causa, alegou que o contrato para a compra dos 600 autocarros conteria “adendas”, estranhamente omitidas no Despacho Presidencial, que contemplaria a construção de uma fábrica de montagem de autocarros com 2.000 postos de trabalho e outras mais valias.
Tal como o alerta de António Venâncio, engenheiro civil e autor do livro FISCALIZAÇÃO DE EMPREITADAS DE OBRAS PUBLICAS – Processos e Princípios, de acordo com o qual a assistência técnica aos autocarros, a construção de uma montadora de veículos no Dande, a formação de quadros angolanos e outras “mais valias” que o Ministério dos Transportes evoca são várias e diferentes empreitadas que implicariam outros projectos e outros contratos, também não é crível que o Tribunal de Contas se deixe embalar pela estorinha de adormecer bebés a que Ricardo D´Abreu agora lançou recurso.
Adivinham-se tempos muito difíceis para o ministro dos Transportes e, também, para quem lhe ampara – se não encoraja mesmo – sucessivos e cada vez mais ousados golpes ao erário.
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